É CORRETO CRIMINALIZAR A DOAÇÃO LEGAL?


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Chamou a atenção de todos os operadores jurídicos o recebimento, pela 2° Turma do Supremo Tribunal Federal, da denúncia realizada pela Procuradoria-Geral da República contra o Senador Raupp, em decorrência da doação de R$ 500 mil doados oficialmente pela construtora Queiroz Galvão a sua campanha para o Senado em 2010, sob a alegação de que seria “propina disfarçada” e teria origem no esquema de corrução instalado na Diretoria de Abastecimento da Petrobrás.

 

O que notabilizou o mencionado fato jurídico foi que a doação foi lícita, registrada tanto pelo doador quanto pelo donatário, no que seguiu todas as obrigações devidas. Ou seja, o mencionado numerário proveio de uma conta específica da campanha; dentro dos limites estipulados para as pessoas jurídicas (as empresas apenas foram impedidas de doarem em abril de 2014, em decorrência da ADI 4650/DF); comprovado através da emissão de um recibo eleitoral, assinado pelo doador e com a especificação do valor doado; com a menção dessa operação na prestação de contas, que foi aprovada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

 

Então, depois de longo tempo do trânsito em julgado da aprovação de contas, calcado em meros indícios, resolve o STF aceitar uma denúncia que se baseia em ilações, como se elas fossem um a priori kantiano. Alegou-se, igualmente baseado em suposições, que o parlamentar deveria ter ciência da “possível” ilicitude da doação e que haveria um pacto para o malbaratamento do erário.  

 

Parte-se do postulado kafkaniano que um cidadão tem a obrigação – não legal, mas jurisprudencial – de saber a origem do dinheiro que está recebendo para sua campanha eleitoral. Não basta seguir todos os parâmetros ofertados pela legislação, mas necessita-se perscrutar, como uma pitonisa, a origem do dinheiro arrecadado. Dessa forma, mesmo sem dolo e sem possibilidade alguma de obtenção de elementos mínimos de conhecimento acerca da gênese financeira dos recursos, imputa-se uma exigência que é impossível de ser satisfeita.

 

Partindo-se do pressuposto de que o dinheiro proveio de uma fonte ilícita, como se pode provar que o parlamentar tinha consciência dessa condição? A legislação o obriga a investigar a origem do numerário doado? Obviamente não! O que se está tentando é uma alquimia jurídica, impondo uma obrigação baseada exclusivamente na vontade do inquiridor, quase um Torquemada, que pela voracidade em acusar faz com que Beccaria se transforme em um revolucionário do Século XXI.

 

Não se trata pura e simplesmente da flexibilização do princípio da presunção de inocência, que pode ser até defensável em determinadas situações. Mas significa a entronização do princípio da presunção da culpabilidade, em que mesmo sem a existência de provas, permite-se a abertura de processo judicial contra um cidadão com base em indícios, sem maior análise fática, mesmo que essa decisão contrarie os fundamentos de um acórdão que analisou exaurientemente os gastos da campanha.

 

Atualmente, assiste-se a uma triste tentativa de criminalizar vários aspectos da política, tornando-a uma atividade quase abjeta. A questão que se avoluma é que não existe democracia sem política. Quando se despreza a discussão sobre a organização da polis, abre-se a porta para o arbítrio e para os regimes ditatoriais, que faz com que a sociedade retorne ao seu estado de barbárie. 

Fonte: Artigo publicado na Folha de São Paulo em 14/03/2017

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